É tudo sobre você — Morada (Análise da música)
Pode uma música ser bíblica e ao mesmo tempo não ser cristã? É o que veremos nessa análise.
A música “É tudo sobre você” da banda Morada traz uma discussão interessante. Aliás, poderíamos puxar alguns pontos aqui.
Primeiro, muitos logo de cara vão encrencar com tratar Deus como você. Resumidamente, a Bíblia não proíbe isso. E essa discussão é particular ao português, uma vez que temos os pronomes da segunda e terceira pessoa do singular: Tu e Você. No inglês, por exemplo, You é usado para tratar de Deus sem estranhamento. Até existe o Thou, mas é mais arcaico. Há diversas músicas em inglês que se referem a Deus usando You sem que seja problemático. Mas essa é uma outra conversa.
Segundo, a música é repetitiva, redundante e repetitiva, muito, demais, pelo menos na versão ao vivo do Youtube. Aliás, na hora de buscar a letra, é até difícil saber o que é uma nova estrofe e o que é apenas uma estrofe que já foi cantada algumas vezes. Se você gosta da música e quer cantar na sua igreja, é só não repetir tanto assim que está resolvido este problema (apesar de não recomendar que a cante na sua igreja, como veremos a seguir).
Agora, o problema maior dessa música, quando pensamos num contexto congregacional, é justamente o primeiro que apresentei neste texto. Ela é claramente bíblica, mas não fala de Cristo. Aliás, fala muito indiretamente. É óbvio que quando pensamos em Deus, temos que pensar em Cristo. Mas em termos de uma apresentação teológica, o trabalho exegético de “É tudo sobre você” não é bem feito.
Para esclarecer este ponto, é necessário falarmos um pouco sobre interpretação e aplicação bíblica.
Quando lidamos com um texto do Antigo Testamento, um dos maiores desafios que temos é como mostrar que qualquer texto aponta para Cristo. Afinal, em Lucas 24:44, Jesus diz que todo o Antigo Testamento (a Lei, os Profetas e os Salmos) falavam a seu respeito. Portanto, se era assim que Jesus lia o Antigo Testamento, devemos fazer o mesmo.
A música tem como pano de fundo o relato do povo de Israel no deserto, conforme lemos em Êxodo. E nisso, ela é sem dúvida alguma bíblica. As referências são todas tiradas de lá: o anjo da morte (Êxodo 12:23), a estrada e o vento na travessia do mar vermelho (14:16), a nuvem e o fogo que guiam (13:21), o pão e a água da rocha (16:4; 17:6), a proximidade do monte, da morte e o medo da visão de Deus (19:2; 24:11; 33:20) e por aí vai.
A música faz uma varredura de diversos momentos da caminhada do povo pelo deserto e sua mensagem principal aponta para a visão da ação e condução de Deus em tudo e como nós não devemos ter medo de nos aproximar dEle. Porém, mostrar isso claramente a partir de Êxodo requer um pouco mais de trabalho, principalmente se queremos expor como Jesus se encaixa nisso.
Primeiro, temos que entender quem é Moisés e qual é o papel que ele cumpre nesse relato. Moisés foi chamado para ser o sacerdote, o mediador entre Deus e o seu povo. Em Êxodo 19:11 vemos Deus claramente afirmando que o povo não deve subir ou sequer tocar no monte, sob pena de morte. Nos versículos 20–24, o texto repete que nem o povo, nem os sacerdotes devem se aproximar, ainda sob pena de morte. A música, por sua vez, pede a Deus que nos tire o medo para nós possamos subir o monte. Mas foi Deus que mandou não subir o monte!
O papel de Moisés era o de mediador, de sacerdote entre Deus e o povo. Somente Ele poderia interceder pelo povo. Era somente com Ele que Deus falava. Tudo passava por Moisés. E esse sistema sacerdotal é o mesmo que vemos ao longo do Antigo Testamento, até mesmo no Tabernáculo, onde somente o sumo-sacerdote poderia entrar no Santo dos Santos para oferecer sacrifício anual pelos pecados do povo.
E então, isso significa que nós não podemos nos aproximar de Deus, que devemos sempre temer a presença de Deus? É claro que não. Mas isso só é possível a partir do sacrifício vitalício de Jesus Cristo, mediador absoluto entre Deus e Israel, o sumo sacerdote que se oferece como holocausto para que nós não precisássemos mais temer e para que pudéssemos nos aproximar. Nisso, Ele nos tornou todos sacerdotes, sem a necessidade de um outro mediador, tal qual era com o povo e Moisés no deserto.
Essa música não explica isso. A letra usa as mesmas imagens do Monte Sinai e simplesmente sobrepõe Cristo, sem fazer esse trabalho exegético. Afinal, o povo não poderia subir o monte. Isso era uma ordem expressa de Deus. Naquele contexto, o povo deveria sentir medo de Deus e deveria recorrer a Moisés.
Nós, porém, não precisamos, e este acesso a Deus, ao Santo dos Santos, de véu rasgado, sem mediação, só é possível por meio de Jesus Cristo e do seu sacrifício na cruz. E é justamente este redirecionamento e aplicação para Cristo que falta na música. É a partir disso que faço a afirmação de que a música, por mais que seja bíblica, não é cristã. Ela não ensina como a obra de Cristo permite que nos aproximemos de Deus. A música não mostra como a cruz esclarece ou resolve o sistema sacerdotal.
A música não apresenta uma heresia ou desvio doutrinário. Porém, a teologia dela é fraca, pois não interpreta o texto corretamente. Ela nos põe em par de igualdade com Moisés sem considerar a maneira pela qual Deus estabeleceu o seu relacionamento com o povo no Antigo Testamento. Ela tenta enxergar o relato do Êxodo a partir de um conceito do Novo Testamento sem mostrar como devemos fazê-lo, sem apontar para Cristo e sua obra na cruz.
Não recomendo esta música para o culto congregacional. Se considerarmos que o louvor é um sermão em forma de música, como disse Lutero, essa pregação não faz um bom trabalho na sua apresentação do Evangelho.
Agora, se você gosta de ouvir a música no dia a dia, não vejo problema algum. Diferente de outras que já mencionamos aqui, ela não apresenta um falso evangelho ou fere a Palavra. Só lhe falta um explicação melhor de como não devemos ter medo de nos aproximar Dele e como tudo é, de fato, sobre Deus.
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