Digno é o Senhor — Aline Barros (Análise da música)
No início dos anos dois mil, a cantora e compositora Darlene Zschech da igreja Hillsong na Austrália compôs a música “Worthy is the lamb”. Pouco tempo depois, foi lançada em português pela Aline Barros.
“Worthy is the lamb” é uma belíssima canção que expressa gratidão a Jesus Cristo pelo seu sacrifício na cruz, explicando o seu significado para nós e exaltando o Filho de Deus ao seu lugar devido. A letra é fantástica, inclusive com um tema que serviria muito bem durante a Páscoa. Infelizmente, não podemos dizer o mesmo sobre a sua versão em português.
Antes de seguir com a análise, vale fazer a seguinte observação a respeito do trabalho de um tradutor. Qualquer pessoa que já tentou traduzir uma música sabe que é praticamente impossível fazer um trabalho 100% fiel ao original. O desafio do tradutor é capturar o melhor sentido possível do original e trazê-lo para a sua língua. O problema é que nem sempre haverá um correspondente que expresse a totalidade do sentido do termo na sua língua original. Cada língua é uma expressão de uma cultura, e não há como fazer uma equivalência direta entre duas línguas que representam culturas distintas. O certo seria chamar de versão, não de tradução, uma vez que o resultado acaba sendo apenas isso.
Sobre a tradução do inglês para o português, talvez o maior desafio seja o tamanho das palavras. Em inglês, temos palavras curtas, com poucas sílabas. Já em português, na hora de traduzir, o certo seria usar termos que infelizmente não vão caber no tempo da música original. No caso da nossa música de hoje, vemos exatamente este problema entre os termos “Lord” e “Senhor”.
Logo, temos duas opções como tradutores: prejudicar a métrica da música e enfiar palavras de três ou quatro sílabas onde caberia apenas uma para manter o sentido original, ou usamos algum outro termo que cabe, mas que altera um pouco o sentido. Em alguns casos, já vi músicas que continham problemas em inglês, mas que foram resolvidos na tradução. Já na música de hoje, é exatamente o oposto.
Como já dissemos anteriormente, a letra da música original é muito boa, e a tradução consegue fazer jus a quase toda a música. Porém, logo na primeira linha ela faz uma péssima escolha de tradução e acaba dando margem para uma interpretação problemática. Vamos à polêmica.
Graças eu te dou, Pai / Pelo preço que pagou
Sacrifício de amor que me comprou / Ungido do Senhor
A primeira linha da música original, traduzida literalmente, diz: “Obrigado pela cruz, Senhor”. A letra original é, desde a primeira linha, endereçada a Jesus Cristo, o Senhor. Mas, por alguma razão, a versão popularizada pela Aline Barros começa falando diretamente ao Pai. O problema é que a partir daí, todo o resto da música fica ambíguo a respeito de quem pagou o preço e quem se sacrificou. Dizer que o Pai morreu e sofreu na cruz é uma antiga heresia conhecida como patripassionismo, termo que significa literalmente o sofrimento do pai. É óbvio que sabemos que foi Cristo, o Filho, que sofreu e morreu na cruz, e não o Pai. Porém, a tradução deixa essa ambiguidade. Podemos dizer que o Pai pagou um preço ao entregar seu único filho para morrer por nós. Mas é difícil afirmar o que o resto da música diz a respeito do Pai.
Pelos cravos em tuas mãos (…) restaurou-me à comunhão
Foi Cristo, o Filho, que nos restaurou à comunhão, não o Pai. O uso do pronome possessivo ‘tuas’ faz um paralelo com o pronome oblíquo ‘te’ da primeira linha, reafirmando a direção do discurso ao Pai.
Ironicamente, o verso me deu perdão, restaurou-me á comunhão ficou melhor do que a original, cuja tradução literal seria “o que agora conheço é seu perdão e abraço”.
Sobre o resto da letra, não há o que falar, uma vez que de fato fala de Cristo, da cruz e exalta ao Senhor. Agora, ficamos perante um impasse sobre o qual cada igreja terá que tomar sua própria decisão. Há igrejas que não veem problema com a primeira linha da música, uma vez que ela acaba sendo ambígua e não fala explicitamente ao Pai além da primeira linha. Por outro lado, há igrejas que entendem que não há como cantá-la uma vez que a primeira linha “endereça” a música ao Pai, agradecendo-o inclusive pelos cravos nas mãos — que, como vimos, seria uma heresia. Por este motivo, quem decide não cantá-la tem boa razão para tanto.
Agora, se você acha que a música vale a pena ser cantada — e cremos que há mérito para tanto — queremos sugerir algumas pequenas modificações na sua tradução.
Um rápido parêntese sobre isso: há quem seja contra modificar o conteúdo de músicas por uma questão de direitos autorais ou até em respeito ao autor da obra. Porém, sendo este caso uma tradução, cremos que vale fazer pequenas mudanças.
Uma coisa a ser mudada é simples: na segunda linha da segunda estrofe, ao invés de “pelo preço que pagou", você pode colocar “pelo o que Jesus pagou", deixando claro que quem pagou o preço foi o Filho. A segunda sugestão, seria mudar a primeira linha para algo como “Graças eu te dou, Deus”. Neste caso, na hora de cantar esticaríamos a primeira sílaba de “Deus” e não ficaria a tão musicalmente boa quanto “Pai”.
Concluindo, infelizmente, a bela música “Worthy is the lamb” foi prejudicada por duas pequenas escolhas de tradução infelizes. Fora isso, esta é uma música que recomendaríamos sem ressalva alguma. Agora, para aqueles que entendem que ela ainda vale a pena ser cantada, sugerimos apenas que faça as devidas alterações para evitar a heresia. Mas, se na sua igreja há um consenso de que ela não deve ser cantada devido a esse erro grave, é uma posição igualmente válida. Como dissemos anteriormente, a avaliação final dessa música ficará a cargo de cada igreja.