Canção de Maria — Mateus Brito (Análise da música)
A música que analisaremos hoje é inspirada no relato de Lucas 10:38–42, a conhecida passagem na qual Marta e Maria recebem Jesus na sua casa. Enquanto Marta está ocupada arrumando a casa, Maria está sentada aos pés de Cristo, ouvindo os seus ensinamentos. Jesus, então, fala a seu respeito: “Maria escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada.”
Sobre a música, o cantor e compositor diz o seguinte:
“Eu sempre amei o texto de Lucas 10 e sempre imaginei o que Maria pensava naquele momento de encontro com Jesus. Meditei sobre esse texto por alguns anos e sempre tive o desejo de escrever sobre isso. Essa canção traz a visão de Maria sobre a visita de Jesus até sua Casa, essa é a ‘Canção de Maria’, tudo o que ela queria cantar pra Jesus e sem dúvidas ela escolheu a melhor parte…”
Apesar da música ser baseada num relato bíblico, o autor deixa claro que a letra da música parte da sua imaginação a respeito do que Maria teria supostamente dito a Jesus, caso pudéssemos ler seus pensamentos. Porém, temos nisso um problema pelo seguinte. A passagem é bastante curta e não nos dá tanta informação assim. Obviamente, podemos inferir que Maria queria, acima de qualquer outra coisa, ouvir os ensinamentos de Cristo. Mas, afirmar que “essa canção traz a visão de Maria” é complicada, uma vez que a música é construída onde o texto se cala. Sabemos o que Maria fez, mas não o que pensou. Logo, temos que tratar essa música com este filtro, de que ela fala a respeito de algo sobre o qual a Bíblia não descreve explicitamente. Vamos à letra.
Hoje é o grande dia que o meu amado
Vem me visitar, eu estou ansioso
Para vê-lo, para vê-lo
Coloquei a minha melhor roupa e arrumei a casa
Eis que vem chegando a hora do encontro
E eu não quero fazer nada
Só quero estar aos teus pés
A música começa falando da suposta expectativa de Maria em relação a este encontro com Jesus. Digo “suposta expectativa” pois no texto, não temos indicação de que este encontro era esperado. Essa expectativa, nesses termos, parece ser muito mais influenciada pela parábola das Virgens (Mt 25:1–13), essa ideia de prontidão e estar arrumada para o noivo. Inclusive, não vemos ninguém chamando Jesus de “meu amado” no Evangelho de Lucas. Logo, o começo dessa música parece ser um tratamento um tanto improvável de Jesus Cristo, da parte de Maria. Ela certamente o via como um Mestre, mas não como um noivo amado.
Tendo dito isso, as últimas duas linhas fazem sentido. Mas, considerando que logo na abertura da música já adota-se um tom quase romântico, fica difícil seguir sem ter isso em mente.
Senhor me ensina a te amar mais / Me ensina a te querer a mais
Eu quero estar aos pés do meu amado / Senhor não quero te perder
Nem por um segundo / Que nada me impeça de ouvir tua voz
Seguindo na nossa linha de pensamento, tudo que é dito nessa estrofe é legítimo e não há nada de errado aqui. Creio que podemos presumir que Maria tivesse de fato desejado o que está descrito acima. Mas, novamente, é uma presunção, pois a Bíblia não o afirma.
Eu escolhi a melhor parte, e ela não será tirada de mim
Eu escolhi estar aos pés do meu amado
E é esse o melhor lugar
Aqui temos a estrofe mais comprometida com o texto bíblico. Temos aqui as palavras de Jesus, o reconhecimento de que ela escolheu a melhor parte, aquilo que não poderia ser triado dela — naquele momento, sentada aos pés de Cristo.
Ele é aquele que tem todo o poder em suas mãos
Ele é soberano em toda e qualquer situação
Ele é aquele que falou e o inferno estremeceu
Com sua voz ordenou a vida e o morto reviveu
Na ponte da música temos uma série de afirmações incontestáveis a respeito de Cristo. Mesmo que nenhuma delas apareça no texto, todas fazem total sentido para o nosso louvor. Temos até uma alusão ao relato da ressurreição de Lázaro — irmão delas, conforme descrito em João 11:1–29.
Compor a partir de um silêncio do texto bíblico é uma escolha complicada, pois é necessário inferir e presumir certas coisas a respeito das intenções e pensamentos do autor. Não é que seja impossível de ser feito, mas creio que é um recurso muito delicado. Pessoalmente, recomendamos evitá-lo, uma vez que a função do louvor é afirmar aquilo que a Bíblia claramente expõe a respeito de Deus. No caso de “Canção de Maria”, em seu exercício criativo, o compositor não comete heresias ou desvios doutrinários, mas creio que o tratamento que ele faz de Jesus é enviesado por outras passagens, como a Parábola das Virgens ou até do livro de Cânticos. Isso acaba atribuindo a Maria uma abordagem que não creio que seja coerente com o que lemos na Bíblia.
Devido à colocação do autor de que essa música traz a visão de Maria, não podemos recomendar esta música para o culto público. Além de partir de presunções a respeito do texto, o tom mais íntimo e sentimentalista não é compatível com uma expressão congregacional. Tendo dito isso, sabemos que nem todos concordarão com a nossa análise e optarão por cantá-la nos seus cultos. Se este é o seu caso, não enxergamos nenhum desvio teológico grave.