1000 graus - Renascer Praise (Análise da música)
O mundo evangélico, especialmente o meio gospel, tem uma particularidade interessante que é o “evangeliquês”. O “evangeliquês” é a língua que falamos. Ela é basicamente o português, mas salpicado de expressões e jargões que só fazem sentido dentro da igreja.
É comum identificar um evangélico em várias ocasiões simplesmente de ouvi-lo falar meia dúzia de frases, com termos específicos que denunciam logo a sua fé. Entre eles, temos termos como glória, bênção, poder, unção e tantos outros.
Infelizmente, essa particularidade faz com que sejamos alvo de piadas quando alguém de fora faz uma justa caricatura nossa usando o “evangeliquês”. E além disso, também faz com que algumas mensagens ou até músicas soem como evangélicas, simplesmente por usarem nosso vocabulário. Mas, no fim das contas, não passam de uma mensagem superficial com cara de evangélica, sem dizer coisa alguma. E sem ser de fato cristã.
A música “1000 graus” do ministério Renascer Praise parece ser um exemplo disso. Temos, ao longo da letra, diversos jargões e termos que fazem sucesso entre evangélicos, mas que juntos não dizem muita coisa, muito menos expressam uma mensagem cristã. Vamos à letra.
Na presença dos homens, na presença dos anjos sempre
Eu te louvarei, Te louvarei
A primeira estrofe começa até bem. As linhas acima parecem ecoar o que diz lá em Salmo 138:1. Porém, logo na próxima estrofe, já começam as afirmações genéricas.
Mesmo estando em guerra, vou celebrando minha vitória
Eu te louvarei, Te louvarei
Você conhece alguém que não está em guerra? Provavelmente não. E qual é a guerra de cada um? Bem, faça essa pergunta a cinco pessoas e você terá sete respostas diferentes. Todos estamos em guerra. Pode ser conta uma doença, um relacionamento, uma questão financeira, todos estão lutando contra algo. E em relação a essa guerra, “vou celebrando minha vitória”. O problema é que a afirmação é tão genérica que cada um aplica à sua própria realidade. Mas será que podemos afirmar vitória em qualquer situação?
Em última instância, a guerra de todo cristão é contra o pecado e mesmo que percamos a batalha diária contra ele, nossa vitória final está garantida pela cruz. Mas como a música não cita nem uma coisa nem a outra, fica a cargo de cada um imaginar a sua guerra e visualizar a sua própria vitória – e afirmá-la “em nome de Jesus”.
Sobre toda terra, novo som se ouvirá
Tua alegria, força pra continuar
Deus de maravilhas, que maravilha
Te louvar, te louvar, te louvar
Então, estávamos falando de guerra, mas agora estamos falando de um novo som que se ouvirá em toda a Terra e que a alegria do Senhor nos dá força para continuar. De novo, quem não precisa de forças para continuar? Afinal, nosso Deus é um Deus de maravilhas! Certo?
Eu entro na sua presença pra receber o seu poder
E quanto mais o tempo passa mais quero Deus
O fogo cai e a igreja canta o inimigo vai ao chão
Fogo e glória nas cabeças, mil graus de unção
Mil graus de unção!
Aqui a música pega alguns dos jargões prediletos do evangélico: poder, fogo, glória, unção. Cada um desses temas daria várias linhas por si só, então por uma questão de espaço temos que ser breves.
Quando a Bíblia fala de poder do alto e unção, ela os associa à pregação e testemunho cristão. Para quem crê em dons espirituais, Deus também envia poder do alto para a manifestação deles. Mas, considerando que Deus distribui os dons como Ele quer e nem todos têm os mesmos dons (1 Co 12:11), temos que partir de uma noção de poder comum a todo cristão. E essa manifestação de poder e unção é para a pregação e testemunho cristão, do qual a música não fala.
Sobre fogo e glória nas cabeças, o paralelo que conseguimos fazer com a Bíblia é o dia de Pentecostes, conforme vemos em Atos 2. Coincidentemente, naquela ocasião, o texto diz que o Espírito veio e se manifestou como línguas de fogo sobre a cabeça de cada um. E cada um falou em uma língua estranha. E o que falavam? Proclamavam as grandezas de Deus (Atos 2:11). Ou seja, receberam poder do alto e fogo e glória e línguas estranhas para... pregar e testemunhar das maravilhas de Deus, conforme falamos no parágrafo anterior. Mas a música também não fala disso.
Na frase que dá nome à música, temos o conceito mais curioso: mil graus de unção. Aqui a unção se misturou com o fogo numa combinação que nem a Bíblia nos apresentou. Mil graus de unção sequer faz sentido, quando pensamos em como a Bíblia trata de unção. Porém, se você constrói uma mensagem baseada em afirmações genéricas juntando fogo com glória com guerra e poder e toda essa linguagem bélica e exibicionista, daí faz todo sentido.
Ironicamente, existe uma outra música da Cassiane chamada “500 graus”. Acho que o “puro fogo santo e poder” dela ficou aquém dos mil graus desse ministério aqui.
Mais do que nos apegar a detalhes, temos que dar um passo para trás e olhar o todo para perguntar: qual é a mensagem dessa música? Como é que ela me leva a contemplar a Deus? O Evangelho? Como é que ela trata o Filho, Jesus, e a sua obra na cruz?
Essa música basicamente exalta o nosso louvor e o poder que temos quando louvamos, na cara dos homens e dos anjos, celebrando a nossa vitória. Temos vitória, sim. A cruz nos garante a vitória final contra a morte e o pecado. Mas por meio de uma série de afirmações genéricas do nosso dicionário “evangeliquês” e embalada numa levada bem agitada, essa música não serve de proveito algum para o culto congregacional. Ela pode até ser boa de ouvir, mas em termos de expressar uma mensagem cristã, só reafirma os jargões da nossa comunidade cristã, sem compromisso com a Palavra, sem nos apontar para Deus e para o Evangelho. É uma música com cara de evangélica, mas que não expressa uma mensagem cristã.
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